O ESTADO DE S. PAULO
Domingo, 13 maio de 2007
VIDA&
EDUCAÇÃO: DIVERSIDADE CURRICULAR
O português falado em Harvard
Cresce o número de estudantes que optaram por montar seus currículos com
disciplinas sobre o Brasil
Renata Cafardo
CAMBRIDGE, EUA - (página A23)
No coração de Harvard se fala português. E o som não vem necessariamente da
comunidade imigrante brasileira, que cresce em Boston desde o fim dos anos
80 e já é uma das maiores nos Estados Unidos. A língua familiar vem de uma
sala de aula em um dos suntuosos prédios no chamado Harvard Yard, o ponto
principal do campus da mais conceituada universidade do mundo. É a aula de
Nicolau Sevcenko, professor da Universidade de São Paulo (USP), mas que
semestre sim, semestre não ensina cultura e história do Brasil em Harvard.
Ele fala de Juscelino Kubitschek, Jango, Lina Bo Bardi, traça o cenário
brasileiro nos anos 50 e 60 para uma turma pequena, mas atenta. Sevcenko tem
cerca de 20 alunos em Harvard, nessa e na outra disciplina que leciona às
segundas-feiras, em que discute modernismo, bossa-nova e chega à história
contemporânea. Apesar de não haver alunos brasileiros, as aulas são, sim, em
português.
Em sua maioria americanos e latinos, eles são estudantes regulares de
graduação ou pós da universidade, que optaram por montar seus currículos com
disciplinas sobre o Brasil. Harvard funciona com um sistema de créditos, em
que cada matéria cursada significa um número específico de pontos. Há
disciplinas obrigatórias, mas a maior parte é escolhida pelos alunos.
Atualmente, há 435 alunos de Harvard cursando disciplinas relacionadas ao
Brasil. Quase todos começam pelo português, mas com algum domínio da língua
já se matriculam em matérias sobre literatura, história, política
brasileira. Só o numero de alunos em cursos de português cresceu 175% nos
últimos cinco anos. 'Eu entro nas classes de espanhol, falo português bem
devagar, conto sobre o Brasil e eles acabam se interessando também pela
nossa língua', diz a professora brasileira Clémence Jouet-Pastré,
responsável pelo departamento de Língua Portuguesa na instituição.
Harvard oferece hoje cerca de 30 cursos relacionados ao Brasil. Em 2008,
serão pelo menos mais dois. O músico americano e especialista em música
brasileira da Universidade de Nova York, Jason Stanyek, foi chamado para
criar duas disciplinas sobre o assunto.
'O Brasil vai se tornando uma parte importante do processo de
internacionalização da universidade', diz o diretor do programa, o
brasilianista Kenneth Maxwell, autor de diversos livros sobre o País. Ele se
refere a uma mudança recente na política de Harvard, tradicionalmente
conhecida por ser autocentrada. A pressão da globalização, no entanto, fez
com que a universidade aumentasse os incentivos para pesquisas sobre outros
países e a busca por estudantes estrangeiros. Hoje, eles são 3.821 dos seus
mais de 20 mil alunos, um crescimento de 35% em relação a 1998-1999. Duas
das direções mais fortes dessa tendência são a América Latina e a China.
Atualmente, o número de estudantes chineses em Harvard só perde para o de
canadenses, entre os estrangeiros. O Brasil é o 15º país mais presente, com
61 alunos, a maior parte deles na escola de Business.
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Escritório no Brasil auxilia pesquisadores
Criação do departamento, em 2006, estimulou o crescimento de teses e
monografias sobre o País
Renata Cafardo
CAMBRIDGE, EUA - (página A24; foto Harvard Yard)
Numa estratégia para facilitar o intercâmbio de professores e alunos,
Harvard conta com diversos escritórios espalhados pelo mundo. No Brasil, o
departamento começou a funcionar em junho do ano passado, em São Paulo, e
tem ajudado pesquisadores da instituição a fazer estudos no País, o que leva
a criação de cursos.
'O fato de o Brasil ser um país importante, fascinante e receptivo também
ajuda a aumentar e manter o interesse dos professores', diz o diretor do
escritório brasileiro, Jason Dyett. Tem crescido também o número de
monografias e teses focadas no Brasil. David Martin, de 21 anos, que estuda
saúde pública, aguarda ansioso pela nota que receberá no trabalho de
conclusão de curso que discute a 'resposta brasileira contra a aids'.
'Harvard está acordando para o Brasil', acredita sua colega e aluna de
Letras e História Rosa Evangelina Beltran, de 20 anos. Mexicana, veio para
os EUA ainda bebê. É a primeira de sua escola pública na Califórnia e de sua
família a estudar em Harvard.
O interesse de Rosa pela América Latina a levou primeiro para o departamento
de Português. Estudou história e literatura brasileiras e acabou fazendo
intercâmbio de seis meses no Rio em 2006. Hoje, ela e David fazem o curso
Português e Comunidade. Como parte das tarefas, Rosa é voluntária no Centro
do Imigrante Brasileiro, em Boston. E nas próximas férias de verão
trabalhará em uma ONG em São Paulo.
'Nada mais motiva a juventude hoje do que se envolver em comunidades e
estudos de países estrangeiros, onde podem fazer diferença', explica Nicolau
Sevcenko, professor da Universidade de São Paulo (USP) que ministra aulas
sobre o Brasil em Harvard. Essa convicção o levou a participar e vencer em
2005 um concurso internacional para professor catedrático de história e
cultura brasileira em Harvard. Como ainda não se desligou da USP, dá aulas
nos EUA apenas entre fevereiro e junho. Mas já avisa que a mudança logo será
definitiva. 'Sair da USP vai ser como cortar uma parte de mim. Mas, ajudando
nesse novo projeto de Harvard, posso dar um retorno maior ao meu país e à
sociedade.'
Uma de suas incumbências é a de montar um grande acervo de estudos
brasileiros em Harvard, com livros, enciclopédias, mapas, vídeos, peças de
teatro, espetáculos musicais. 'Aqui, não há limite financeiro para a
aquisição desse material. É uma coisa até difícil de acreditar para nós,
brasileiros', diz. O projeto inclui ainda a criação de uma rede entre
universidades americanas, com troca de informações e pesquisas sobre o
Brasil.
Na aula de Sevcenko, ele conta da renúncia de Jânio Quadros, do AI-5 e
inclui um comentário sobre a crise aérea recente no País e a reação dos
militares. A americana Raquel Kennon, aluna de pós-graduação que sonha em
conhecer a Bahia, anota palavra por palavra. 'O Brasil é um novo campo de
pesquisa que está se abrindo. Há muito o que aprender.'
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Entrevista - Kenneth Maxwell: historiador inglês
'Brasil e Harvard têm raízes profundas'
Para ele, é impossível a universidade ter um programa sério para a América
Latina sem uma sólida presença nacional
Renata Cafardo - (página A25)
O historiador inglês Kenneth Maxwell acredita que o Brasil será um dos
grandes beneficiados pelo processo recente de internacionalização da
Universidade Harvard. Com os incentivos para aumentar o estudo de línguas e
culturas estrangeiras e a ajuda financeira do empresário Jorge Paulo Lemann,
Maxwell e sua equipe têm conseguido manter o País entre os temas de pesquisa
e discussão na instituição. 'É impossível ter um programa sério sobre
estudos da América Latina sem um componente sólido brasileiro', diz.
Uma das maiores autoridades estrangeiras em estudos sobre o País, hoje ele é
o diretor do Brazil Studies Program no Centro de Estudos Latino Americanos
David Rockefeller, em Harvard. Maxwell esteve pela primeira vez no Brasil em
1965, com uma bolsa de pós-graduação. Suas pesquisas levaram à publicação de
Devassa da Devassa, em 1977, que mudou a forma de se pensar a inconfidência
mineira.
Seu livro mais recente, O Império Derrotado, fala de como a Revolução dos
Cravos influenciou a política internacional. Veja os principais trechos da
entrevista.
Qual é o objetivo do Brazil Studies Program?
Primeiro, aumentar o conhecimento e o estudo sobre o Brasil, as pesquisas
sobre a língua e encorajar publicações. Harvard está reconhecendo que é
impossível ter um programa sério sobre estudos da América Latina sem um
componente sólido brasileiro. Infelizmente, ainda existem pesquisadores nos
EUA que se dizem experts em América Latina e acham que é suficiente saber
espanhol. É inaceitável ignorar essa grande proporção do hemisfério
ocidental, tanto em espaço quanto em população, e desconhecer uma das
culturas mais vibrantes. Além disso, queremos garantir que o programa seja
realmente internacional e não focado em uma área específica. O programa
procura conectar os melhores docentes e estudantes de Harvard, líderes em
suas disciplinas, aos seus colegas brasileiros. Em todas as áreas em que,
muitas vezes, Harvard tem os melhores profissionais do mundo. Assim,
acredito que podemos contribuir efetivamente para o desenvolvimento do
Brasil.
Como explica o aumento do interesse de Harvard no Brasil?
A relação entre o Brasil e Harvard tem surpreendentemente raízes profundas,
como, por exemplo, a visita de Dom Pedro II no século 19. Mas uma das causas
recentes é a internacionalização de Harvard, pela qual o estudo de línguas e
culturas estrangeiras tem sido valorizado. O Brasil está se tornando
importante nesse processo. Isso reflete o fato de o País ter aumentado sua
presença internacional, e não me refiro somente à economia nem me limito à
comparação com os países da América do Sul ou do BRIC (Brasil, Rússia, Índia
e China, consideradas nações emergentes). Estou falando também em termos do
seu impacto cultural sobre os jovens nos EUA. O Brasil não é tão
desconhecido como há 20 anos: tem-se muito acesso a clubes de capoeira,
músicas, filmes.
Como o senhor avalia o primeiro ano?
O ganho neste pequeno período foi imenso. O programa está progredindo e o
escritório do Brasil é um sucesso. Estamos construindo algo para longo
prazo.
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Boston vive um pouquinho do Brasil
Harvard organiza encontros e no cardápio entram coxinha e brigadeiro
Renata Cafardo
CAMBRIDGE, EUA - (página A25; foto: CULTURAL VALORIZADA-Alunos da
instituição montaram roda de capoeira em um prédio da universidade)
Além de aumentar a presença do Brasil em seus currículos, a Universidade
Harvard tem ajudado a valorizar a cultura, a história e os avanços do País
para a comunidade de Boston e das cidades vizinhas. Quase toda semana, há um
evento diferente, aberto ao público em geral - com coxinha, brigadeiro e
banana frita no cardápio.
Em abril, foi realizada a Brazil Week, que trouxe especialistas brasileiros
e estrangeiros para falar sobre música e cinema, imigração, entre outros
assuntos, durante uma semana. Uma roda de capoeira, com alunos da
instituição, foi montada em um dos prédios da universidade.
Um dos presentes na platéia era o cônsul do Brasil em Boston, Mario Saade.
Para ele, Harvard ajuda a fazer um trabalho que o órgão oficial não
consegue. 'Temos uma demanda tão grande de atividades consulares e uma
estrutura tão pequena que não temos como organizar eventos desse tipo', diz.
Não há dados oficiais porque muitos dos imigrantes são ilegais, mas
estima-se que haja 350 mil brasileiros na região de Boston, uma das três
maiores comunidades do País nos EUA.
Para atrair participantes, a maioria dos eventos é em inglês. Em março, foi
realizada uma conferência sobre tratamento e prevenção da aids no Brasil.
Uma das palestras mais concorridas foi a do ex-diretor do Programa Nacional
de DST-Aids Paulo Teixeira sobre a batalha com os EUA para a derrubada de
patentes de remédios. Harvard organiza ainda os chamados bate-papos, uma
oportunidade para estudantes de português praticarem a língua com convidados
brasileiros.
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Tomás Galli de Amorim
Program Officer, Brazil Office
David Rockefeller Center for Latin American Studies (DRCLAS)
Harvard University
http://drclas.fas.harvard.edu/brazil
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